Eu não sei mais ser parado. Já soube. Mas hoje sinto que não nasci para o quarto. Aliás, o meu quarto nem tem a minha cara. Penso que nele há cama, objetos de estudo e entretenimento, mas que hoje não há mais um lugar, só um local. Não por falta de empenho de meus pais, verdade - é até bem servido de tralhas. Portanto, vi nesse tempo quase bíblico que estamos vivendo a necessidade de transformar esse local num lugar novamente.
Comecei pela música, sempre amiga dos solitários. Troquei as cordas do violão velho de guerra, desses que a gente têm na adolescência - ajuda com as meninas, apresenta novos amigos, etc etc. Foi bom reviver os tempos de músico de escola, relembrar aqueles acordes empoeirados ao tempo. Aquele tempo em que crise de existência era "Ai, meu Deus, faço música ou medicina?" A medicina venceu. Mas, caramba, logo nesse tempo, a vencedora não pode exercer o título, como assim? Não se faz medicina no quarto. Já o violão está aqui, não está? Calma, amigo leitor, a crise de existência não retornou, apenas as definições de vírus foram atualizadas e com elas, a definição de existência também sofreu um update.
Pronto, música reativada e reinserida nas atividades instrumentais da vida diária. Mas, ainda assim, o local não virou lugar. Então, como bom leitor que sou, parti para a leitura. Clássicos, não tão clássicos, populares, nacionais, literatura estrangeira, só não arrisquei auto-ajuda, não por senso crítico, que a essa altura está bem menos intolerante, mas por falta de paciência mesmo. Ainda não há lugar. Ainda não me sinto preparado para o quarto. Pelo menos, a leitura casual também foi reinserida nas atividades instrumentais de vida diária.
Ah, espera um pouco! eu estava entrando numa fase mais saudável antes do dia em que a terra parou. Academia regularmente, corrida na rua, alimentação exemplar. Quase um atleta. O tênis tava até começando a ficar do formato do pé e tudo mais. Por que não tentar? Olha, se tem duas coisas que ainda funcionam perfeitamente como antes é internet e cartão de crédito. Foi só juntar os dois e pronto. O quarto agora tem música, leitura e uma academia minimamente utilizável.
Ainda não é lugar!
Vídeo chamada com a namorada. Videogame. Fen Shui. Meditação. Pintura. Inglês. Escrita. Faxina. Estudo. Até para os congressos online eu apelei. E ainda não sinto que o quarto já tenha a minha cara. O que há de errado? O local? Eu?
Na minha mente há tantos poemas lindos engatilhados e prontos para o que estou sentindo. Mas hoje prefiro a sobriedade da prosa. Já preferi os versos e estrofes às linhas e parágrafos. Talvez seja por aí. Pode ser que as coisas estão tão menos coisas e as pessoas tão mais pessoas que o erro não seja o local, nem eu. O momento parece inteiro estranho. A época mesmo. Tempo, pessoa, lugar (ou agora locais) e o escambau.
Não há lugar para mim hoje onde ontem eu habitava. O quarto não tem a minha cara de ontem, mas até que, olhando bem de perto, parece com a cara de hoje. Olha aqui o nariz, olha a boca. Vê essa barba por fazer e as olheiras? É. Parece sim. Pode não ser bonito como soavam os versos e estrofes criados na juventude, é verdade. Mas tem a sobriedade de uma prosa sincera, livre de métrica e rima.
Já assumi esse novo lugar para esse novo eu nesse novo tempo. Estou pronto para fazer o que precisa ser feito, ser quem preciso ser. O meu quarto é a minha cara. É o meu lugar. Onde eu estiver fazendo e sendo o que for preciso, ao meu jeito, dentro de minha realidade, é/será meu lugar.
Gabriel Machado