domingo, 16 de agosto de 2020

Novo lugar no novo mundo

Eu não sei mais ser parado. Já soube. Mas hoje sinto que não nasci para o quarto. Aliás, o meu quarto nem tem a minha cara. Penso que nele há cama, objetos de estudo e entretenimento, mas que hoje não há mais um lugar, só um local. Não por falta de empenho de meus pais, verdade - é até bem servido de tralhas. Portanto, vi nesse tempo quase bíblico que estamos vivendo a necessidade de transformar esse local num lugar novamente.

Comecei pela música, sempre amiga dos solitários. Troquei as cordas do violão velho de guerra, desses que a gente têm na adolescência - ajuda com as meninas, apresenta novos amigos, etc etc. Foi bom reviver os tempos de músico de escola, relembrar aqueles acordes empoeirados ao tempo. Aquele tempo em que crise de existência era "Ai, meu Deus, faço música ou medicina?" A medicina venceu. Mas, caramba, logo nesse tempo, a vencedora não pode exercer o título, como assim? Não se faz medicina no quarto. Já o violão está aqui, não está? Calma, amigo leitor, a crise de existência não retornou, apenas as definições de vírus foram atualizadas e com elas, a definição de existência também sofreu um update.  

Pronto, música reativada e reinserida nas atividades instrumentais da vida diária. Mas, ainda assim, o local não virou lugar. Então, como bom leitor que sou, parti para a leitura. Clássicos, não tão clássicos, populares, nacionais, literatura estrangeira, só não arrisquei auto-ajuda, não por senso crítico, que a essa altura está bem menos intolerante, mas por falta de paciência mesmo. Ainda não há lugar. Ainda não me sinto preparado para o quarto. Pelo menos, a leitura casual também foi reinserida nas atividades instrumentais de vida diária. 

Ah, espera um pouco! eu estava entrando numa fase mais saudável antes do dia em que a terra parou. Academia regularmente, corrida na rua, alimentação exemplar. Quase um atleta. O tênis tava até começando a ficar do formato do pé e tudo mais. Por que não tentar? Olha, se tem duas coisas que ainda funcionam perfeitamente como antes é internet e cartão de crédito. Foi só juntar os dois e pronto. O quarto agora tem música, leitura e uma academia minimamente utilizável.

Ainda não é lugar!

Vídeo chamada com a namorada. Videogame. Fen Shui. Meditação. Pintura. Inglês. Escrita. Faxina. Estudo. Até para os congressos online eu apelei. E ainda não sinto que o quarto já tenha a minha cara. O que há de errado? O local? Eu?

Na minha mente há tantos poemas lindos engatilhados e prontos para o que estou sentindo. Mas hoje prefiro a sobriedade da prosa. Já preferi os versos e estrofes às linhas e parágrafos. Talvez seja por aí. Pode ser que as coisas estão tão menos coisas e as pessoas tão mais pessoas que o erro não seja o local, nem eu. O momento parece inteiro estranho. A época mesmo. Tempo, pessoa, lugar (ou agora locais) e o escambau.

Não há lugar para mim hoje onde ontem eu habitava. O quarto não tem a minha cara de ontem, mas até que, olhando bem de perto, parece com a cara de hoje. Olha aqui o nariz, olha a boca. Vê essa barba por fazer e as olheiras? É. Parece sim. Pode não ser bonito como soavam os versos e estrofes criados na juventude, é verdade. Mas tem a sobriedade de uma prosa sincera, livre de métrica e rima. 

Já assumi esse novo lugar para esse novo eu nesse novo tempo. Estou pronto para fazer o que precisa ser feito, ser quem preciso ser. O meu quarto é a minha cara. É o meu lugar. Onde eu estiver fazendo e sendo o que for preciso, ao meu jeito, dentro de minha realidade, é/será meu lugar. 

Gabriel Machado

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O cenário de fora

  Me parece que as pessoas dessa terra viraram cactos. Ou foi isso, ou não sei o porquê de há tanto tempo rodando por esse asfalto quebrado não encontrar um pé de gente por essas bandas Se, para cada letreiro que eu visse, tivesse meia pessoa lá fora, teria visto uma boa rencada, de modo a não lembrar os rostos. Mas não! ainda tenho na memória cada rosto rachado e seco que vi por esse caminho, de tão pouca que era essa gente.
  Outra questão não resolvi: - Se quase não há gente, como se ergueram as cercas? Nem com toda força de vontade consigo imaginar um cacto sisudo e sofrido desses levantando um mourão. Mais fácil acreditar que as cercas ali já estavam - antes dos cactos, até.
  Bem, também não quis descer e perguntar nada disso. Se quisesse, não teria resposta - essa é outra coisa que não consigo imaginar: cactos respondendo minhas perguntas de passa-tempo. Calei-me, inclinei a poltrona e dormi. Já foi triste o bastante não haver vida fora do ônibus. Ficar para virar cenário seria ainda mais.

Gabriel Machado. 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Aquele (velho) navio

  Na placa dizia: 32 sentados e 18 em pé. Era ingenuidade acreditar nela. O mar não estava em outro lugar que não dentro do navio.
  Eram tantos braços negros. Seguravam-se em barras sobrepostas às suas cabeças. Eram tantos braços brancos, igualmente amontoados, estonteados, apertados, embarcados.
  Aquele navio tinha rodas e não era gratuito. Não era barato. As mercadorias usavam fardas. Usavam fardos. Eram usadas.
  Pelos menos, nele todos eram iguais em sofrimento e em humilhação.

Gabriel Machado.


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Era café amargo

      A essa altura ela já conhecia o meu repertório, sabia como eu queria o meu café, mas creio que fazia questão de fazer o oposto e juro que ainda não sei o porquê. Talvez por gostar de gastronomia a dois, não sei. Isso era coisa dela.
      Sem mais digressões, era ela, aquela mulher, a tal, mas que ainda insistia em errar no meu café. Logo no meu café? No tão sagrado café? Ora! A boba sabia sobre Bóson de Higgs, falava de antimatéria, mas não sabia fazer o meu café. Que raio de mulher não sabe fazer o meu café? Aposto que a Marie Curie sabia fazer o café do Pierre. Assim foi feliz, o Pierre, casado com alguém que sabia fazer o seu café. Que sonho!
     Um homem da minha altura, da minha postura, do meu partido, sem café. Absurdo! Abuso! Despautério!
     Mulher assim não servia para mim. E digo logo que saber fazer o café é sim um valor e tanto. Como pode, meu Deus, uma mulher que não prepara o café do seu marido? Ainda mais uma astrofísica.
     Me fez visitar o espaço, sem sair da Terra, mas não me fez o café direito. Me jurou uma vida de poesia, mas não prometeu fazer o bendito café corretamente. Aprendeu até os meus infinitos arranjos de violão, mas não aprendeu que para uma moagem grossa o café deveria estar em contato com a água num intervalo de seis a nove minutos. Não quis entender que uma concentração perfeita estaria entre oitenta e cem gramas de pó por litro de água. Não entrava na sua cabeça que a água utilizada deveria ser apenas aquecida e não fervida.
        Qual a complexidade de fazer o café? Bastava lembrar do que eu lhe dizia: -A perda de oxigênio altera a acidez do café. -A temperatura ideal era em torno dos noventa graus Celsius. 
-Pelo pó do café deveria passar somente água, nada mais. Que mania a dela de misturar o café novo com café já feito.   
      Todo santo dia gastava horas vestindo uma calça jeans que teimava em não entrar, mas não esperava os mínimos seis minutos do preparo. E as cartas estelares? Passava horas as contemplando e nada de ler as minhas recomendações sobre o café. Mas chega de falar do café.
       De resto, ela era perfeita. Das coisas que ela sabia, sabia como ninguém -E não falo de astrofísica, nem de química, biologia ou filosofia. Era livre, não era leve -E não precisava ser, mas era solta. Mas como eu poderia ficar com alguém que não sabia fazer o meu café e que, ainda por cima, me acusava de não saber fazer um simples chá?
Gabriel Machado



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Aquela casa sem graça

   Ali pelos arredores de Sapeaçu tinham inúmeros casebres. Um, em especial, era de tanta simplicidade que não tinha teto, não tinha nada. Aliás, como essa pedra já foi cantada e dessa vez a casa não era engraçada, direi que naquela casa tinha uma antena parabólica no que seria um teto e uma bicicleta na sua porta, como tantas outras nas redondezas.
   Era de se esperar que eu chegasse à conclusão de que pobres moravam ali. Não fiz isso. Nada podia provar que aquelas pessoas que moravam ali eram pobres. Muito pelo contrário, se mostraram de muita riqueza, as suas crianças, elas brincavam umas com as outras. Há muitos não via essa cena.
   Também era de esperar que eu me sentisse agoniado ao ver aquela cena - crianças brincando descalças em barro vermelho. Nada disso! Muito saudável aquela visão, faz bem para o pé, faz bem para a alma, um pouco de barro e lama. Se há quem diga que do barro viemos e para o barro iremos, por que não brincar um pouquinho no barro também?
   A vida ali não é fácil, mas aqui também não é. Isso nos torna iguais, em espécie e gênero, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.
   A casa pode até não ser engraçada, mas tudo isso terminar em música é.


Gabriel Machado.